My love for you

O meio é a mensagem ( Marshall Maclun , teórico da comunicação )

Johnny MathisSempre gostei muito do Johnny Mathis. Acho que nunca escutei algo que fosse mais a expressão do romantismo de uma época. Johnny Mathis. Era o próprio símbolo dos anos dourados. Além de tudo sempre fui fã de carteirinha da música popular norte-americana. Tinha um velho gravador de fita onde gravava religiosamente os programas da Eldorado AM - Música Popular norte-americana. Foi assim que desde cedo escutava Gershwin, Cole Porter e Irving Berlin. Emocionava-me ver o Professor aloprado para ouvir Stela by starlight ou a inesquecível Audrey Hepburn cantando Moon River na escada de madeira.
Mais tarde, anos depois na Universidade passaria a escutar as noites de jazz e me renderia aos encantos dos acordes de Dave Brubeck em Time Out, Oscar Peterson em Tonight e do maior de todos, o grande mestre Mile Davis. Johnny era paixão, era emoção.
 Minha curiosidade foi despertada em uma tarde de verão em que o amigo V... executava no piano My love for you. Sempre que V... tocava, ele tocava esta música. Fazia parte do pacote, da seqüência. Muita vezes na casa da Luiz de Camões ficávamos sentados na sala a conversar esperando que a mãe de V nos trouxesse o cafezinho. Entre grandes planos e sonhos de parte a parte  V... tocava várias músicas no piano.  Eu era um bom apreciador e um bom ouvinte. Naquela tarde, entretanto V... estava propenso a confidencias.
 -Sabe porque eu sempre toco esta música? Perguntou-me ele com o ar de superioridade que nunca abandonava,
-Não. Nunca soube, mas pressinto que vou saber agora.
Eu estava apaixonado por ela. Marly era a garota com quem eu sonhei e sonhava todas as horas do dia e da noite. Não sei dizer porque eu adicionei-a a "My love for you", ou teria sido o contrário? Bem não importa agora. Pensar em Marly para mim era ouvir My love for you. Havia dias em que eu pulava da cama e ainda em jejum vinha até este piano e aqui tocava "My love for you".
 Eu a amei, idealizei e sonhei sua figura vestida com o uniforme azul de normalista. Sempre a acreditei apaixonada tanto quanto eu. Um dia resolvi tornar aquele sonho realidade e encontrei a ocasião certa num baile em que todos iríamos ao Clube Atlético Santista.
Era um baile de gala, esqueci o porque, só tinha olhos para ela  e ela estava linda. Trocara o uniforme de normalista por um vestido rosa comprido e os cabelos loiros e curtos estavam presos e faziam ressaltar seus olhos verdes que prendiam a mim. Acreditei que era a ocasião certa para revelar que a amava. Tudo me indicava isto. Dancei quase todas as seleções, em especial as românticas e dancei somente com ela. Encostava meu rosto junto ao dela e não falava, apenas sussurrava. Só podia dizer que a amava quando tocasse a música. Quando tocasse a nossa música - My love for you. E foi exatamente o que eu fiz.
Provavelmente foi mesmo. V... era muito  certinho. Não teria feito de outro jeito. A estas alturas ele já se encontrava na Quinta ou na Sexta execução de My love for you, uma verdadeira overdose desculpável dadas as circunstâncias. Eu é claro queria agora saber aonde toda aquela estória nos levaria.
-E depois que você lhe revelou o seu incomensurável amor, o que ela lhe respondeu ???
-Bem, ela se mostrou surpresa e disse que não esperava ouvir aquilo. Mas que pensaria muito no assunto e me daria uma resposta.
Suspirei com impaciência. As xícaras de café se sucediam e os cinzeiros estavam cheios.
A estória prosseguiu. Haveria um novo baile em um mês no mesmo salão do mesmo clube e onde com a graça de todos os santos e de Johnny Mathis estaria novamente Marly. Certamente nessa noite esplendorosa V... conheceria a resposta de sua amada fosse ela qual fosse.
Creio que não posso afirmar com uma certeza absoluta mas durante um mês a vizinhança conheceu cada nota, acorde, arpejo, mínimas e semínimas de My love for you.
My love for you, is deep and endless as the see....Esqueci de mencionar que além de tocar V... em muitas ocasiões cantava junto. Ë claro que acabei conhecendo  cada verso e cada estrofe de cor e salteado.
Os dias se sucederam e chegou finalmente o dia "D". O dia esperado. O dia da revelação.
Neste dia continuou a contar-me V... tudo que vestia era novo em homenagem a Marly. O terno, o cinto, a camisa, até a cueca era novo.
Mas a minha paciência não era. Tamborilava os dedos na poltrona e batia os pés discretamente no chão enquanto My love for you martelava meus ouvidos.
V... acendeu mais um cigarro e continuou a narrativa. Era a noite pela qual eu esperara um mês. Um mês durante o qual eu sonhara todos os sonhos com a estrela de minha vida.  Agora lá estava eu com a garota dos meus sonhos nos braços. Era dia dos namorados e no baile dos namorados dançava  My love for you.
-Você pensou no que eu te pedi? Perguntei a ela olhando aqueles olhos verdes.
E então? Incentivei-o a finalizar a resposta de Marly.
Sabe você que ela me disse uma frase delicada, mas que era dura como uma pedra.  "Você será sempre o meu amigo mais querido V..." Aquela frase encerrou o baile para mim. Não pronunciei uma palavra a mais com minha irmã, minhas primas e amigos que estavam conosco. Marly percebendo a situação retirou-se mais cedo discretamente com uma amiga queixando-se de um resfriado.
A partir desse dia eu sentava aqui neste piano e durante horas tocava às vezes invariavelmente esta melodia. Nunca pude esquecer o quanto ela me trazia do sonho de Marly e do nosso amor nunca concretizado.
Senti tristeza pelo meu amigo. A partir deste dia escutava-o tocar My love for you em um silêncio religioso em respeito ao seu amor não correspondido, E Marly passou a fazer parte da minha lembrança através daquela melodia. Passaram-se os dias e passaram-se os anos. Estudamos e nos formamos. V... agora médico formado casara-se com uma amiga comum inclusive e foi para os Estados Unidos fazer um curso de extensão.
Como amigo da família que era visitava seus pais de quando em quando e em algum Natal cheguei a falar com V... pelo telefone. O tempo continuou a passar e um dia V... voltou.
Alguns dias após sua volta tornamos a nos encontrar. Foi num almoço no apartamento dos seus pais que agora moravam no Gonzaga.
Foi um almoço festivo. Reencontrei V..., a esposa e seus pais. Foi um almoço longo entremeado de muitos casos e estórias acontecidas  em Worcester onde meu amigo estivera alguns anos. Sentamo-nos depois pelos sofás do ambiente da sala em meio a vários álbuns de fotografias e seqüências de slides comentadas pelo próprio V...,
Uma descrição através de imagens da cidade de Worcester, pronuncia-se uster dizia de boca cheia, do campus universitário. Da casa onde ele e a esposa moravam, os amigos, vizinhos, cachorro, até as variações do colorido das folhas das arvores evidenciando as mudanças de estação do ano, tudo estava lá.
A tarde passou, Veio o licor, o café, os indefectíveis cigarros. A mãe de V... havia se retirado com a esposa dele e o pai estava as voltas com o manual em inglês de uma máquina Kodak. Ele então se sentou no piano e falou :
-Há tanto tempo que não toco neste piano. Nos Estados Unidos eu mais ouvia do que tocava. Pouquíssimas pessoas têm um piano em casa. Diga-me meu caro, o que você gostaria de ouvir? E sorriu para mim com o contumaz ar de superioridade.
Sem hesitar respondi:-My love for you. Quero ouvir My love for you!
V... olhou-me com um ar espantado e respondeu :-My love for you??? Não me lembro. Acho que não conheço esta música.
Eu não respondi porque fiquei mudo. Mudo de espanto e desespero...

 

P.S.

Encontrei-me casualmente com V... alguns meses atrás. Ele disse-me que havia estado alguns dias antes com Marly caminhando no passeio dos jardins da praia. Estava muito pálida e num fio de voz evidenciava uma fraqueza muito grande caminhando sem segurança. Contou-lhe que sofrera de uma leucemia galopante sem condições de reversão.    Ela faleceu alguns dias após este encontro.

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