Juventude americana e influência do Jazz

 

Falo de sonhos que são os filhos de uma mente ociosa,

Engendrados unicamente pela vã fantasia e tão finos de

Substância quanto o ar e mais inconsistentes do que o

Vento que agora acaricia o seio gelado do Norte e, que,

Depois de irritado, sopra para bem longe de lá virando a

Cara para o Sul, coberto de orvalho.

(Romeu e Julieta, William Shakespeare)

 

Usava-se em uma certa época falar da Sociedade como aquela parcela das pessoas de um determinado setor localmente identificado que detinham e desfrutavam de melhores condições econômicas de vida material. Como todo grupo ou organização um elemento da sociedade que não era uma socialite, uma patricinha ou mauricinho por que não existiam tais termos e a própria sociedade tinham seus ícones, regras e identificadores como é do costume de qualquer confraria ou  igrejinha.

Entre a sociedade santista, aquela parte da parcela da população santista que fora aquinhoada pela melhor condição, existiam é claro alguns ícones. A alta roda cultuava determinados valores e coisas, algumas de gosto duvidoso e outras que eram no fundo de gosto extremamente hilário.

Quem era de sociedade não morava em qualquer bairro. A sociedade habitava  a Pompéia, o Boqueirão e é claro a famosa Vila Rica. Uma família que habitasse por estas áreas era tida na conta como uma família de "sociedade". Estas famílias habitavam preferencialmente em casas, tinha ojeriza a apartamentos e situavam-se ou entre profissionais liberais como médicos e advogados ou detentores de prósperos negócios imobiliários, importação e exportação, entre outros.

Outros sintomas da "sociedade" eram a existência em casa de um telefone. Invariavelmente o velho macaco preto, aquele antigo Classe III da CTB, era substituído por modelos com brancos e dourados tal e qual aqueles no qual Débora Kerr falava em seus filmes. De preferência com várias tomadas pela casa. Creio que meu pai esperou  quase quarenta anos e nunca viu um telefone funcionando em sua casa. Conhecia apenas o telefone na casa de meus avós cujo número nunca pude esquecer - era o 4-4361. Havia apenas as estações 4 e 2.

         Desde minha meninice conheci o que chamávamos de geladeira, um móvel estranho e sem sentido todo de ferro e com uma porta semelhante a um cofre em cujo interior eram guardadas barras de gelo onde alguns alimentos eram conservados. Um caminhão entregava de porta em porta as tais barras de gelo e os homens que as entregavam lembro de conhece-los por geleiros.Nestes tempos, entretanto a sociedade possuía gigantesca, a tecnologia não havia diminuído os componentes de refrigeração, Frigidair e Gelomatic a nacional a querosene geralmente adquiridas em grandes magazines como a Clipper em São Paulo que tinha até escadas rolantes.

Ouvia-se muito e freqüentemente rádio. Põe no rádio, deu no rádio, ouvi no rádio. Apesar de não ser a era do rádio o rádio era o nosso elo com o mundo. A TV permanecia quieta, um objeto anacrônico e solitário no canto da sala e somente entrava em atividade à noite quando a figura de um indiozinho aparecia na tela. Não havia programas matutinos ou vespertinos.  Já existiam os albores e prenúncios de uma contracultura contestadora que não conseguia esboçar nem mesmo o porque de sua existência. Notava isto nas famosas séries de Domingo assistindo Além da imaginação e tentando entender o existencialismo de Rota 66 com George Maharis. Emocionava-me o conflito de gerações da juventude americana resolvidos pelo Papai sabe tudo. Não podia deixar de torcer para que Elliot Ness resolvesse mais um caso com os Intocáveis e a aventura tomava conta de nossas vidas por uns instantes através de Rin-Tin-Tin, de Lassie. Sofríamos os conflitos humanos do Dr. Kildare e do Dr. Bem Casey. Ríamos do nosso espectro político ouvindo Silveira Sampaio e tornava-mos circunspectos nos dramas da Tv de Vanguarda e retornávamos a infância com Lúcia Lambertini e o Sítio do Pica-pau Amarelo.

A juventude americana usava calças Farwest, blusões de gola rolê, como os de James Dean em "Juventude transviada, mascava buble gum importada, fumava Malboro importado e costumava portar sevilhanas como as de James também. Os topetes eram vastos sobre um certo olhar blasée escondidos por um par de óculos rayban semelhantes ao de Ronaldo Guilherme. Tanto fiz que meu pai me deu um daqueles blusões de cor azul clara. Quando saia com ele havia até pessoas de meia idade que se voltavam para me olhar e apontar gritando coisas como playboy e transviado. Não me importava porque estava do lado que tinha de estar. Dean não era mau nem covarde. Protegia Sal Mineo, amava Natalie Wood e ao invés de  embebedar-se bebia leite como um típico rebelde sem causa da juventude americana.

A sociedade indiferente divertia-se em bailes fechados, jantares beneficentes, festas de debutantes e Grande Glamour Girl e estampava sorrisos em colunas sociais . Vestia  modelos confeccionados em costureiras de confiança e desdenhava os "tubinhos" pret-a-porter e os chemisiers  que a industrialização começava a colocar no mercado. Ban-lon, Tergal e Nycron nem pensar. As garotas já usavam saint-tropez e duas peças, uma ousadia considerável para os olhares da época.

A inauguração de Brasília foi o auge dos anos JK. Via e não compreendia muito bem o que meu pai explicou-me como um novo processo lançado pela televisão. "Chama-se video-tape disse ele", enquanto eu olhava o monitor monocromático uma sucessão de imagens sem som. As cores ainda não haviam chegado a TV, E ainda veríamos o Brasil tornar-se tri-campeão mundial de futebol em preto e branco. As cores ainda pertenciam ao mundo do cinema.

Graças ao VT pudemos ver o inesquecível show do Carnagie Hall e tudo passou a ser bossa-nova. Juca Chaves criticava a sociedade e a juventude americana que preferia aplaudir Neil Sedaka entoando em contralto canções românticas. Num ano conturbado vi a era JQ terminar sem entender o que acontecia junto com milhões de pessoas.

Num cenário confuso vimos um homem chamado Jânio Quadros tornar-se o presidente da república. Alguns meses depois o rádio anunciava trocas de presidentes por várias vezes e a noite era transmitido um interminável discurso conhecido como "A Voz da legalidade" cuja intenção não conseguia perceber.

Freqüentar a Ilha das Palmas, os bailes do Parque Balneário, o Tênis Clube e é claro o clube XV eram atividades da sociedade. A juventude americana tinha Copacabana e o Posto 6 no Rio que era chamada jocosamente de jeunesse dorée pelo Stanislau Ponte Preta no Rio e pelo Silveira Sampaio em São Paulo. Já em Santos havia o calçadão da praia . O XV atraia então como o lugar que era necessário estar e onde tudo acontecia nas proximidades das mesas de calçada do Café Atlântico onde poderia se esperar horas para conseguir um lugar aos sábados e domingos.

Uma frente imponente e luxuosa se estendia até as calçadas do XV cortada por uma  pista larga, entre jardins,  por onde podia passar um carro.. Entretanto Sábado e Domingo apenas um Mustang vermelho estacionava defronte a porta suntuosa. O carro de Janca sempre ao lado de pé apoiado nas muletas sinais indeléveis da paralisia infantil que o havia atingido, sempre cercado de sua turma de sócios do XV.

Era difícil e dependia da predileção dos porteiros mas as vezes eu entrava. Gostava de ver os salões sempre limpos e brilhantes que concorriam com os do Parque Balneário. No primeiro andar, após o amplo hall de entrada chegava-se ao salão principal onde tinham lugar as famosas domingueiras do XV. Ali a juventude americana dançava ao som de um conjunto acústico que embalava seus sonhos com as canções de Ray Coniff e tudo que materializasse os sonhos das paixões vistas nos cinemas.

Durante a tarde o salão de snooker do térreo era concorrido e disputado. Os grupos reuniam-se em silencio ao redor das mesas de pano verde iluminadas por slots suspensos e num ritual calculado os parceiros escolhiam tacos, passavam giz nas pontas e em gestos dignos de Paul Newman batiam bolas nas caçapas enquanto consumiam copos de coca-cola e cigarros Marlboro numa apresentação sempre bem cuidada em calças de tergal e camisas ban-lon. Um senhor uniformizado que atendia por Gilberto controlava o salão e o horário das mesas cuidando para que somente os sócios as usassem.

Muita vezes costumava ir ao "salão de baile", uma expressão que se perderia no tempo, com o  Carlos Eduardo. Tornamo-nos amigos estudando no secundário e voltava-mos do colégio juntos quase sempre. CAÊ era uma figura um tanto tímida de óculos e cabelos escovinha, um costume também da juventude americana. Tocava piano e tocava muito. Isto lhe valia um constante assédio das meninas aonde quer que fosse. Uma característica que o tornava um excelente camarada. Ele e o piano de cauda eram uma só figura e as músicas de Menescal e Boscoli tomavam conta da tarde. Influenciado por Paulino, Sion e Serginho Mateus ele tocava de ouvido conhecendo apenas harmonia para um salão de mesas vazias e silenciosas . Sentado ao lado do piano escutava CAÊ tocar Influência do Jazz para o salão vazio como se nunca houvesse feito outra coisa. A música saltava de seus dedos como eu sempre desejara faze-lo. A  música dentro dos sábados prosseguia até a hora do crepúsculo na orla do Gonzaga.

O prenuncio do entardecer avistado dos terraços do salão e o por do sol na praia do Gonzaga lembravam a chegada de mais uma noite que a juventude americana iria viver. breve uma crise sem precedentes se instalaria em Cuba, JFK seria morto em Dallas e após um discurso célebre e inflamado feito na Central do Brasil fariam o mundo desmoronar ao nosso redor, levando de nós algo que talvez nunca mais fossemos capazes de recuperar. Mas tudo aquilo não seria mais esquecido. A lembrança e os sonhos de uma juventude que teve influência do Jazz.


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