Um clarão nas trevas

Ir até o Rio no autódromo de Jacarepaguá. A juventude carrega o espírito aventureiro e crê que isto basta para que tudo dê certo. Nosso desejo em ver aquelas poderosas máquinas dirigidas pelos semideuses do automobilismo superava o medo da pouca experiência  em guiar numa estrada perigosa, mal sinalizada e conservada como a Dutra  em uma maratona de 6 horas de viagem num carro velho e sem manutenção. Afinal éramos loucos por carros. O Nelson, o Girodo e eu é claro.

A bagagem era mínima e reduzida embora não fosse essencial. Não se pensou siquer na possibilidade de dormir num hotel modesto e retornar após uma boa noite de sono. Os nossos recursos mal davam para comer alguma coisa e depois da Oficial  haveria uma corrida amadora cujos protagonistas éramos nós em revezamento noturno dentro de um  Fusca rumo a Baixada Santista.

Acorrida foi uma das experiências mais emocionantes que passei Não é uma emoção reproduzível pela TV ou pelo rádio, mesmo porque a ousadia da TV não chegava ainda a tanto. Transcorremos a tarde no autódromo e o sol já se punha quando deixamos para trás aquela montanha de emoções.

Resolvemos retornar dali mesmo. Éramos três aventureiros com saudade do conforto de uma cama limpa e  arrumada. No apertado espaço interno do Fusca folgado para três rapazes eu vinha escarrapachado no banco traseiro, pois como não sabia dirigir não revezava. Acomodados no banco dois violões Di Giorgio que não se sabe porque o Nelson e o Girodo haviam trazido. O Fusca andava devagar, mas gastava pouco e também não dava problemas. O crepúsculo terminara quando de estômago vazio atingíamos a Dutra.

Naqueles tempos não se temiam roubos e assaltos e só o estado da estrada poderia causar surpresas e dificuldades ao motorista. O ar era fresco na escuridão da noite, o que era um alívio após o sol escaldante da tarde. O céu era límpido e podíamos ver várias estrelas brilhando cintilantes. O Girodo cantarolava para manter o Nelson acordado, mas nosso maior incômodo era a fome que se agigantava.

O carro percorria agora um trecho em meio a extensas pedras e vegetação e não conseguíamos enxergar mais nada a não ser esparsos olhos de gato que aqui e acolá nos mantinham na pista certa, muito embora fosse raro que cruzássemos com outro veículo. Foi quando em meio à escuridão avistamos um clarão ao longe distante do carro. Girodo mexeu-se inquieto e pediu ao Nelson:

-Pare! Pare no clarão! Quem sabe conseguiremos comida.

-Ok! Ok! Eu já ia mesmo parar...Estou zonzo bicho!

Uma freada brusca e o Nelson projetou o carro fora da estrada, diminuindo a velocidade até que paramos a porta de um enorme barracão de madeira, semelhante a um celeiro com portas de madeira também.  Colocados na porta dois enormes archotes ardiam numa chama alta e fumarenta de óleo. Fora do barracão e na frente, fincados em postes haviam outros archotes iguais. As portas de madeira não apresentavam quaisquer tipos de campainhas, mas tão somente grandes aldravas de latão. Sob o telhado estilo inglês uma tabuleta pendurada com correntes dizia: “A Toca do Lobo Bobo”.

O Nelson começou a dar sinais de medo. Gente, dizia ele, isto parece coisa de bruxaria. É melhor nos irmos embora. Ficamos confabulando e resolvemos entrar carregando os violões. Em último lugar serviriam para pagar a conta. Segurei a aldrava e a fiz soar na porta. Depois de algum tempo um homem sorridente de bata branca assomou a porta e nos convidou a entrar.

Eram várias mesas compridas que conseguimos adivinhar com bancos únicos para toda a mesa. Uma mesa de convento. Nós fomos seguindo o homem de avental que se movimentava à vontade no escuro. Parecia haver ligeira claridade de umas clarabóias que se divisavam no teto muito alto.

Acomodamo-nos numa mesa e pressentimos a forma tênue de uma área que parecia ser um palco a nossa frente. Sobre a mesa havia uma botija de barro e algumas canecas. Enchemos essas e vimos que era água. Girodo começou a ensaiar uma música no violão e dedilhando as cordas puxou os acordes de Insensatez e nós começamos a cantar.

Ouvimos risadas abafadas na mesa ao lado onde um grupo de vultos se movimentava agora ruidosamente entre tilintar de copos e talheres. Uma voz grave e solene, mas bastante familiar começou a cantar Se todos fossem iguais a você “de Elizete e um coro afinado cantou junto à voz. Após um momento a mesma voz familiar disse dirigindo-se a nós”:

-Vocês aí moçada, vamos fazer um trato? Nós cantamos uma velha pr’a vocês e vocês cantam uma nova pr’a nós! Porque vocês não sentam aqui conosco?

Levantamos Nelson, Girodo e eu e nos aproximamos da direção da outra mesa. Alguém na mesa deles acendeu umas velas. E de repente estavam todos lá sentados a olharem para nós.

O rosto redondo e bonachão de Vinícius de Morais com um violão nas mãos sentado ao lado de Elis e no outro lado a figura humana e incrível de Tom Jobim com os cabelos despenteados com um papel e uma caneta nas mãos. Haviam vários outros rostos conhecidos. Girodo diz ter visto Sergio Ricardo no fundo da mesa, Edu Lobo e alguns pianistas da noite.

Senti um tremor nas pernas e sentei no banco. Não podia me render a realidade que meus olhos viam. Ali naquele momento que guardei como uma preciosidade lapidada em meu tempo, lá estava eu frente a frente com o mito. Como se não bastasse o mito estava do lado da Lenda e sentada entre eles, formando um trio que olhava para mim e ria como se eu fosse a coisa mais engraçada deste mundo, a gauchinha mais conhecida do Brasil.

Seus olhos eram duas contas brilhantes que prendiam teu olhar como se não mais pudéssemos desviar os olhos deles, tal a intensidade e a  alegria incontida que despejavam em nosso rosto. Os  trejeitos que já havíamos visto várias vezes sob as luzes do palco eram agora repetidos em sua simplicidade como uma coisa absolutamente natural, como uma extensão de seu corpo enfim. Falava como quem ria e ria como quem falava balançando a cabeça para trás e para frente apoiando-a ora no braço de Vinícius ora no braço de Tom.

Já que não quer conversar tome uma conosco disse Vinicius. Cada um de nós tomou um copo da cachaça que ele serviu e ali tomei uma pinga com o Vinicius. Pensei que um dia teria a satisfação de dizer que já havia tomado uma e ainda servida por ele. Elis e Tom tomavam cervejas.

Eles haviam feito um show em algum ponto do Rio e Vinicius segundo ele disse sugeriu que viessem para esse barracão, um estúdio quase abandonado onde eles costumavam se isolar para ensaiar, cantar e viver.

O garçom se aproximara e colocara uma travessa de carne quente e defumada sobre a mesa. Nós comemos com eles e como disse o poeta simplesmente cantamos. Cantamos a vida e o amor num encontro que jamais será esquecido por ter sido o dia em que vimos a face da Música Popular Brasileira e dela recebemos um carinho especial.

 


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