No Bardubelo com Gogo

 

NO BARDUBELO COM GOGÔ

 

Tu és o rei, mas o direito manda

Que de igual para igual eu te responda

O que é direito é um privilegio meu.

(Édipo Rei de Ésquilo)

 

Foi a USP quem primeiro me deu a verdadeira dimensão da noção de Campus. O espírito da convivência é a essência do Campus como a essência da vida comunitária e da solidariedade foi a bicicleta branca de Amsterdam. O Campus muito além de escolas reunidas numa mesma área subentendia, como o era no dia a dia, uma troca de experiências. Isto permitia que uma cooperação se estabelecesse sem que importassem quem fossem seus protagonistas que talvez só depois de algum tempo se descobrissem de uma mesma escola ou de carreiras afins. Os estudantes juntos num mesmo objetivo era o Campus. Acima das escolas

A vida era feita no Campus, comer, beber, dormir, estudar e sonhar numa vida em comum. Dividir problemas, angústias e aspirações creio que não verei isto novamente. Não era sem razão que os detentores do poder perceberam desde o início o perigo que o Campus representava para a ordem estabelecida como tal. Melhor seria suprimi-lo e eliminar aquela subversão orquestrada conta os valores e a ordem constituída

A USP tinha o Campus e o Centro de Vivência que era o núcleo do restaurante central e do salão de festas e o palco. Além disto cada escola tinha o seu próprio Campus um sinal do engajamento estudantil na vida social.

O politécnico sempre foi um alvo preferido da mordacidade e do riso no meio cruspiano estudantil. Assim era que o politécnico recebia a conotação de bitolado, mas eu ainda creio que no fundo de tudo todos sabiam que o politécnico era um elemento engajado e talvez mais conhecedor da necessidade das transformações sociais, do estudo do ser humano, do que os próprios estudantes de sociologia e psicologia. Teria sido uma bela tese.

A História e Geografia foram os primeiros conjuntos a serem construídos na Cidade Universitária. Não tinham uma concepção arrojada, mas o espaço era amplo e aberto e atraia um enorme contingente de cruspianos de tal sorte que era impossível encontrar seus bancos e escadarias vazias fosse a hora que fosse. Cheguei a cursar dois cursos ambos noturnos na História: um curso sobre a história da Arte e outro sobre a cultura eslava.A época permitia a livre circulação noturna sem maiores inconvenientes.

Nunca me dei conta disto, mas o fato é que estávamos seguros na Cidade Universitária. Várias vezes costumava ficar na História e pela madrugada ia para a Física onde fazia trabalhos à noite no computador. A modernidade era um IBM /360 que operava dia e noite com entrada a cartão. O suporte a entrada por vídeo só aconteceria após a minha formatura, na década de 70.

A.. era um grande amigo e inseparável companheiro. Sua grande paixão era a Biologia e após muitos sacrifícios havia chegado lá. A carreira e os interesses em ciências diferentes haviam dissociado nossa convivência, mas havia elos que sempre nos traziam de volta em pontos de interesse comum como o interesse pela pesquisa e pela discussão dos próprios objetivos de vida.

Assim era comum que pelas marginais da Cidade Universitária nos encontrássemos na madrugada e andando a pé carregando enormes sacolas de cartões as costas fruto de sacrifícios perante o /360. Várias vezes encontrei A.. passando em frente ao cofre do Tio Patinhas rumo a História para tomar algum ônibus. O cofre era como assim chamávamos o Instituto de Eletrotécnica um verdadeiro clone do cofre do Tio Patinhas.

Frente ao cofre situava-se a Escola Politécnica ou “A Veneranda” para os íntimos. Alguns se referiam de um modo muito carinhoso como “A Escola” e em certa ocasião que já me foge da memória disse-me um colega que a considerava como a ave que coloca os filhotes sob suas asas numa proteção que irá até que os filhotes possam voar por si. Pueril e romântico, mas com uma profundidade real de um passado de realizações únicas. Era o que se entendia por espírito politécnico.

O cirquinho e o biênio constituíam os dois primeiros anos de vida da Poli. O cirquinho era o prédio redondo com as salas divididas em forma de arena e lá como numa delas mesmo eram dadas as aulas às diversas turmas que lotavam uma platéia de iniciantes. O Biênio eram salas convencionais que eram dispostas para estudos que exigiam mesas e equipamentos pouco usuais como o desenho e o laboratório.

Nossa modernidade era o CCE, o Centro de Computação Eletrônica, pomposo nome do edifício que abrigava o primeiro computador de grande porte a ser trazido para a USP – um Burroughs 3500. Havia também o microscópio eletrônico, uma verdadeira lenda já que nunca se soube de alguém que o tenha visto. Sobre o CCE estava a sala do Grêmio Politécnico uma das instituições mais sólidas e respeitadas na USP, como o CAOC – o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da USP com quem rivalizava.

O DLP era outra instituição antiga e uma mantenedora do material de estudo politeco. Assim não havia ninguém no Biênio que não conhecesse a Diva do DLP. Aliás, não era possível adentrar ao cirquinho sem passar pelo DLP, pelo grêmio Politécnico e pelo DF, tudo no andar superior. Os mestres entravam por baixo. O DF era o Departamento Feminino. A principal razão de haver um DF é que durante anos a Escola foi um reduto exclusivamente masculino. Até que em certa ocasião em que se realizava vestibulares tentando entrar no banheiro fomos impedidos por uma moça de guarda na porta que nos impediu dizendo:

-Não podem entrar! Esta porcaria aqui, não tem banheiro feminino e nós nos apoderamos deste aqui. É claro que depois foram criados os banheiros femininos e o DF, mas a história ficou.

Descendo do Biênio e saindo do cirquinho em direção aos prédios da Eletricidade, passava-se pelas amplas salas de desenho com suas mesas enormes e avistavam-se ao fundo os barracões da Civil, Naval, Mecânica, Metalurgia e Minas. Dali saiu minha primeira pça usinada num torno CNC que tenho até agora sobre a escrivaninha. Finalmente caminhando junto ao laboratório de Circuitos Integrados chagava-se a cantina, lanchonete e restaurante de todos nós onde o Cláudio Belo jamais sai do caixa e onde centenas de vezes sem conta sentei nos mesmos lugares e pedi os mesmos sanduíches. Nós o chamávamos de Bardubelo. Numa vaga alusão a Barbarela a heroína sem-carater feita por Jane Fonda.

Foi numa ocasião em que entrei sozinho e apressado no Bardubelo. Todas as mesas estavam lotadas e ainda havia gente esperando vaga. Rodei as mesas com o sanduíche na mão quando avistei sentado sozinho na última mesa e sozinho o mestre José Goldenberg. Ele me acenava, devendo lembrar-se de mim como um aluno duplo. Em Eletromagnetismo na Física e em Física II na Poli. Sentei a mesa a sua frente.

-Achei que você devia estar procurando lugar! Se não se importa de sentar comigo...

-Mas é claro que não mestre, disse olhando para uma das maiores autoridades em Física no Brasil. O mestre almoçava um cheeseburguer e tomava um guaraná. Eu preferia a coca-cola. Creio que o que mais era admirável nele e era sentido por quem o conhecia de perto era a sua simplicidade em explicar as coisas mais difíceis de compreender com uma linguagem simples e direta, fácil de ser compreendida até por quem não era familiar do assunto. Sua figura de cabelos grisalhos e voz forte era carismática e fazia de José Goldenberg um mestre muito querido e admirado.

Como agora quando explicava para mim como era possível conhecer o valor da massa estelar do universo: imagine um campo de futebol onde num pedacinho de tamanho conhecido eu conto o número de folhas de grama. E depois em vários pedacinhos iguais a este eu faço  a mesma coisa. Com o numero de folhas em media por pedacinho basta que eu saiba o número de pedacinhos no campo inteiro e eu saberei o número de folhas de grama no campo inteiro também. Agora faça de conta que eu sei a massa média em um pedacinho da galáxia – a partir daí eu posso saber a massa do universo.

-Viu como é simples?

-Sim, mas como saber o tamanho do universo?

-Você precisa estar fora dele para saber. Uma formiga que anda no campo não sabe o tamanho do campo. Só poderá saber depois que andar várias vezes em várias direções e sempre voltar ao mesmo lugar. É através do tempo que ela leva para fazer esse “Cooper” digamos assim que ela consegue adivinhar o tamanho do campo. Gogo pegou uma tira de guardanapo e retorcendo-a mostrou uma superfície de Moebus para ilustrar o que falava: caminhar em duas dimensões mas uma só superfície.

-Falamos da preocupação nossa como brasileiros d crise de energia, da destruição das florestas e da preservação ambiental.

-Sem tudo isto, não adiantar conhecermos a física teorica nem sermos professores ou engenheiros. O homem tem que, acima de tudo, defender o seu ambiente, as suas condições de vida na terra. Estudei com muita profundidade estwa assuntos em Stanford.

-Voce fez doutorado em Stanford ?

-Não. Na verdade fui lá para dar aula nos cursos de doutorado.

Levantei-me e despedi-me do mestre José Goldenberg, que dali a alguns anos se tornaria o ministro da Ciência e da Tecnologia. Faria parte do Conselho Nacional de Pesquisa Energética onde foi contrário a retomada do projeto de Angra 3, coerente com suas posições. Anos mais tarde como Presidente da FBDS-Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, responsável por poluição atmosférica e auditoria ambiental entre outras ocupações, organizaria o primeiro Núcleo Demonstrativo de Clean Development Mechanism – CDM np Brasil. A FBDS foi escolhida por Agencias internacionais para isto.

Ainda Reitor da Universidade de Brasília e depois  Ministro da Educação e Ministro do Meio Ambiente Goldenberg escreveria o seguinte texto expondo de forma muito clara a situação do desmatamento da Amazônia :“17000 Km 2 Uma área equivalente a metade da Bélgica e a todo o Estado de Israel. Esse número já foi maior e parece Ter se estabilizado no nível atual. Cerca de 14% de toda a floresta já foi destruida e na marcha  atual outros tantos o serão no próximos 20 ou 30 anos. Quando atingirmos esse nível os atuais bolsões de desmatamento, relativamente circunscritos, serão tão estensos que levarão logo a destruição de áreas ainda maiores”.

A preservação do meio ambiente é uma característica de maturidade e inteligência das pessoas, certo mestre?

 


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