Almoçando na bandeja histórica

("Se todos quisermos, dizia-nos há quase 200 anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, poderemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-la". ( Discurso de Tancredo Neves perante o Congresso Nacional, logo após sua vitória no Colégio Eleitoral sobre o deputado Paulo Maluf, 15 de janeiro de 1985)

 

         Ir para as cidades históricas em Minas Gerais numa daquelas incômodas excursões de 4 ou 5 dias é a mesma coisa que conhecer nada. È necessário empenhar tempo e disposição e Ter a alma observadora.

         Dispus-me a começar o meu circuito particular em São João Del Rey. Procure chegar a São João Del Rey durante o dia para que o primeiro contacto visual esteja sob a luz natural. São João é lenda, mistério e tradição. Sobretudo tradição mineira. O principal inconfidente de São João é Alvarenga Peixoto, mas sua projeção mais recente deveu-se ao presidente Tancredo Neves seu filho ilustre.

         Inácio José de Alvarenga nasceu no Rio estudou em Coimbra onde conheceu as idéias liberais. Foi trabalhar em São João Del Rey onde cortejou Bárbara Heliodora filha mais velha de um amigo. A paixão o ligou a Bárbara e a São João Del Rey. Foi em São João que conheceu o Alferes, o Pe.Toledo e Tomaz Antonio Gonzaga.

         Representante típico da tradição moderadora da política mineira, Tancredo Neves caracterizou-se pela tendência à conciliação e à negociação, sem prejuízo da consistência de suas posições liberais.

         Tancredo de Almeida Neves nasceu em São João del Rei. Formou-se em direito e mais tarde foi promotor de justiça em sua cidade natal, tendo lá iniciado a sua a vida política. Foi vereador, deputado estadual, 5 vezes deputado federal, senador, governador de Minas Gerais presidente da república, eleito pelo colégio eleitoral em 1985. Faleceu em 21 de abril de 1985, sem Ter assumido o cargo e após longa agonia que emocionou o país.

         Estes são os filhos ilustres e reverenciados de São João del Rey. Caminha-se em suas ruas de pedra sabendo-se que ali eles caminharam e pensaram. Quem sabe talvez tenha, até lido o curioso Jornal do Poste, com as notícias da cidade, como eu leio agora surpreso com esta idéia que nunca havia visto anteriormente.E mudaram a história deste nosso país. Um sobradão de 12 janelas e q2 portas, na esquina da Getúlio Vargas com Artur Bernardes foi onde Tancredo passou sua infância. Passei lá para ver o que hoje quase não existe destruído num incêndio em 1995.

         Cheguei em Tiradentes aos primeiros raios do sol. Ainda era madrugada e percorri as ruelas históricas vazias da cidade que tem o nome pelo qual o inconfidente ficou conhecido.

         A igreja pequenina e vazia tinha um ar de abandono e abrindo um grande portão d e grades  de ferro bem enferrujadas entrei na pequena casa com apenas vinte bancos de madeira bem empoeirados. Atrás da igreja um cemitério abandonado do uso tinha lápides brancas com grandes teias de aranha tecidas entre as campas. O orvalho gotejava nas teias e na luz do sol a nascer lembravam brilhantes pendurados. Vi a casa do Pe. Toledo onde muitas reuniões da Inconfidência sucederam e almocei no largo do chafariz. Voltei a igreja após o almoço e encontrei o pároco. Muito solicito ele se dispôs a acompanhar-me a Barão de Cocais para apreciar as pinturas rupestres. As pinturas são figuras feitas por homens primitivos representando o seu cotidiano em figuras talhadas na pedra.

Voltando a igreja após uma arriscada incursão em que fiz o registro fotográfico das pinturas, o pároco contou nos registros o número de habitantes de Cocais todos registrados no livro da igreja.

         Após uma noite em uma pousada silenciosa e simpática segui para Ouro Preto. Quem nunca foi se surpreende mesmo que a tenha visto dezenas de vezes, em fotos, filmes e vídeos. Estar com a antiga Vila Rica nos olhos e saber porque aquela cidade é Patrimônio da Humanidade. Andar por suas ruazinhas estreitas com o chão de pedras arredondadas e o incomparável casario colonial que a cada pôr-do-sol reflete os raios de uma maneira diferente é uma experiência tão rica e incomparável que deveria fazer parte de um desejo de cada brasileiro, como o de ver um desfile das Escolas de Samba, a queima de fogos no reveillon em Copacabana ou os jacarés no Pantanal.

         Entrei na Faculdade de Geologia e Mineralogia na Praça Tiradentes e subi as escadarias até o ate o gigantesco telhado de onde pude fotografar toda a praça. Os telhados de Ouro Preto são franceses. Telhados franceses são montados a partir do desenho geométrico das plantas e as subidas representam as bissetrizes dos cantos até que elas possam se encontrar.

         Todos os elementos do telhado clássico francês se encontram presentes. São eles: as águas furtadas que são as superfícies planas e inclinadas, as cumeeiras, os espigões e os rincões  que são arestas delimitadas pelo encontro de duas águas, cada qual com ângulo de inclinação diferente, o rufo e a fiada que são seqüências de telhas, a eira e a beira que são construídas especialmente para escoamento.

         A visão que se tem do pôr-do-sol sobre os telhados é o verdadeiro cartão postal de Ouro Preto. A imponência da Igreja Nossa Senhora do Pilar sob o pôr-do-sol de Ouro Preto se sobressai na serra do Espinhaço. É a imagem que se guarda nos olhos pela rara beleza. Defronte a Escola no lado oposto da praça está o Museu dos inconfidentes que abriga os restos mortais de alguns deles.

         Desci até a praça e depois de andar algumas ladeiras encontrei a casa de Tomaz Antonio Gonzaga. Fui até o jardim onde sentei no banco de pedra em frente ao chafariz. Ali naquele banco quase se pode ouvir as liras de Tomaz recitando Marília de Dirceu. Senti a opulência e a grandeza da Casa dos Contos e retornei a Praça onde entrei num modesto e típico restaurante mineiro que era também uma espécie de empório.

         Atrás do balcão encostados e empilhados junto as paredes dezenas e dezenas de formas de queijo curado; As mesas eram barris onde uma tábua fazia as vezes de tampo de mesa. Acomodei-me em frente a um deles e pedi um feijão batido.

Foi nesse momento que um negro magro e alto entrou com uma bandeja de madeira na mão e sentou-se no balcão dirigindo-se ao homem de avental branco que servia. E disse o seguinte:

         -Hoje é dia do aniversário da libertação. Por  favor, sirva-me estalajadeiro. Hoje eu quero almoçar na bandeja histórica!

         E ele ria-se enquanto o feijão era depositado na bandeja. Em frente à mesa de barril eu pensava que ele não deixava de Ter razão. Era dia de Santo Antônio.

         A  Mina de Morro Velho, inaugurada no século 19, foi uma das mais profundas  do mundo, com 2.5 Km de profundidade e 4 Km  de extensão.  Conhece-la é uma experiência fascinante. Descer por seus vagonetes e observar os veios ainda existentes nas paredes. E ver um velho garimpeiro que agora é guia retirar o ouro de uma bateia e como estar dentro da história.

         Ouro Preto Patrimônio Cultural da Humanidade  e patrimônio de nossos corações é uma aula viva de história e de civilização. Saindo de Mariana, ainda admirado com as casas sos bandeirantes e seu chão de cascalho na Rua da Olaria segui para Congonhas do Campo para ver a obra do grande mestre.

         Antonio Francisco Lisboa -'O Aleijadinho', nasceu em Vila Rica, e era filho de  Isabel, escrava de seu pai um carpinteiro, construtor de projetos de arquitetura de igrejas e juiz de paz. A escola do aleijadinho foi a oficina do pai. No final do século XVIII, o mestre Aleijadinho contraiu uma doença conhecida na época como zamparina o  que lhe causou muito sofrimento.

         Esta doença causara em Antonio Francisco Lisboa a perda dos dedos dos pés,

Atrofia dos dedos das mãos que devido à dor ele mesmo cortara. Só conseguia trabalhar com os cinzéis amarrados nos pulsos até o final de seus dias quando se tornou disforme, pobre e abandonado em meio à revolta e pobreza da região.

         Suas obras, mesmo vistas de longe para proteção das mesmas impressionam pela beleza e transmitem calma e serenidade. Fiquei tempo a olha-las procurando reconhecer as figuras dos inconfidentes nos apóstolos do Cristo que ele teve a inspiração para modelar. Saí de Congonhas carregando as imagens de Aleijadinho nos olhos e no espírito.

         Nas Minas Gerais grandes acontecimentos desenrolaram-se, Guerra dos Emboabas, mais tarde descoberta dos diamantes e, por conseguinte reinício do ciclo, mas principalmente, em Minas floresceram o gênio da arte barroca e a esperança de um Brasil liberto e forte. Ali todos nós democraticamente almoçamos na bandeja histórica.

 

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