A sensação imaginária da continuidade

A sensação imaginária da continuidade

Avós, Tios e quejandos

Quando não se respeita uma pessoa em sua integridade emocional, intelectual e material, ela é excluída da sociedade pelos governos, pelas instituições, pelas famílias, pelas pessoas em geral. Os grupos mais excluídos por essas práticas são as crianças e os idosos.

(Simone de Beauvoir)

A velhice é sempre vista pelos outros e não pertence às pessoas que não sentem a própria velhice; as pessoas me olham e pensam: lá está aquele velho senhor de barba e cabelos brancos. Devo trata-lo respeitosamente, ele vai morrer logo. A velhice são os outros.

(Jean-Paul Sartre)

 


 

A sensação imprópria da impossível retenção da juventude nos chega como uma fera selvagem a partir de nosso entendimento sem um aviso próprio quando passamos nas passagens marcadas por todo um contexto que nos cerca  a partir do inevitável entendimento de nós. Se essa sensação não pode ser administrada nem sublimada assumimos a adoção de medidas sem sentido para explicar o que não é possível.

Nos verdes anos da doce infância a passagem do calendário era vincada pelo Natal e também pelo último dia do ano. Jamais em muitos anos ocorreu-me a idéia de que há pessoas que não sabem o que é Natal, quem é Papai Noel ou que estouram fogos de artifício ao virar a folhinha. As festividades de Natal e Ano Novo são um marco, constitue1m um ritual de passagem como é muito bem lembrado em 1968 o ano que não terminou. Até o Especial do Rei Roberto Carlos tornou-se um marco. O Especial de Natal agrada a muitos, até quem não é fã do Rei. Tornou-se parte inseparável da época e do ambiente e está ali para garantir a efêmera sensação da continuidade, como a música de Marcos Valle a nos lembrar que é um novo tempo e haverão de vir outros natais, outras semanas e domingos que tocarão as notas do tema do Fantástico. Uma grande quantidade de fogos garantirão que haverá um novo ano e uma nova chance a ser aproveitada, desde que voce invente e tente e faça tudo diferente.

O rito da continuidade já me pregou teimosas peças. Na universidade onde alcei meu próprio vôo após deixar a síndrome do ninho vazio com os procupantes cuidados de uma mãe aflita adquiri a minha própria síndrome de continuidade, a síndrome do pombo correio como a chamam os psicólogos de almanaque. A revoada sempre acontecia nos sábados. Uma opressão pesada caia sobre mim e vários colegas que partilhavam o privilégio ou o malefício de residir a apenas 80 Km de casa. A sensação que tinhamos era de que se não retornassemos para casa a semana não teria terminado. Assim ao chegarmos ao término da semana útil era mandatório administrar a  “volta para casa” sem olhar esforço ou obstáculo como recurso, bagagem, condição temporal condição financeira e por aí em diante. Ínumeras vezes não tinha nem mesmo o suficiente para comprar uma passagem de ônibus para a volta.

Tudo isso era incompreensível e não sucedia aqueles nossos prezados colegas que tinhaam vindo de alhures e algures e não nutriam nem remota esperança de regressar todo final de semana a casa de seus pais. Primeiro o dinheiro era curto e segundo a distância era vezes considerável.  Um colega nosso que viera de um lugar chamado Altinópolis só ia para lá nas férias Carnaval e Natal. A gente até duvidava que este lugar existisse. Alguns até faziam um vôo como de São Paulo a Presidente Prudente, ou então pela VASP-Viação Atibaia-São Paulo.

Conheci uma pessoa de bastante intimidade que passava as férias sempre na cidade de Valinhos. Fez tal coisa durante  30, disse e escrevi 30, anos. Se nas férias ela não viajasse para lá...sai de baixo.

Como disse antes a sensação imprópria da impossível retenção da juventude é uma fera selvagem que ataca a todos que cercam o monstro atacado pela doença do envelhecimento..  Um corolário da sensação irreal da continuidade. Desenho para você que não chegou lá. Quando tinha perto de 40 anos encontrava-me as vezes com um casal amigo de praia. Tinham duas filhas meninas sem o despertar da adolescência. Era quando estava com eles companheiro de brincadeiras e subia as meninas sobre meus ombros para que fizessem mergulhos na água. As meninas achavam o máximo aquele rapaz de 40 anos dispensando atenção para elas e com muita intimidade o chamavam pelo nome, o que não faziam com os pais. Anos depois, já transformadas em muito belas mulheres fui de um momento para outro classificado como “seu tio” , quase “seu avô”. Coisas do inconsciente trabalho de retenção do tempo . 

Nada diferente em relação a sobrinhos e sobrinhas tortas e reais que ao se aproximarem da perigosa casa dos 30 e 40 transformaram-me num decrépito e vetusto Senhor X ou pior ainda Sr.Tio X. Um sobrinho torto que no alvorecer de seu namoro com uma sobrinha querida chamava-me de brother. Anos já casado com ela e quarentão, a careca incipiente recebeu-me em sua casa, prancha de surf na mão. Não pude disfarçar o riso quando apontando a TV foi dizendo "o senhor deve gostar do canal de cine cult n'é tio ? Tem só filmes antigos ! ". Pronto! A mágica varinha de condão transformara o brother num senil ancião para rejuvenecer o surfista quarentão. Coisas do inevitável escoamento do tempo. Relevar este comportamento creio que seja o melhor e único comportamento cabível ao ser humano que cria mecanismos para contorna-lo.

Lembro bem que em determinada ocasião, um pouco enfastiado desta desgastada discussão de filósofos de botequim fechei a questão. Nunca alimentei quaquer animosidade contra o papel do tio favorito ou o avô querido. É esta sim a continuidade real de nossa descendência e do nosso DNA, nunca o instrumento de nossa jovialidade que muda a cada instante. Uma sutileza difícel de detectar, numa região sombria e delicada do procedimento.

Tive um colega de muitos anos de trabalho, cujo enteado já homem feito, porém garotão de praia que atirou-se a um casório precipitado. Engravidara a pretendente. Chegado o rebento, meu colega gostou é claro do herdeiro vindo do moderninho casal.

O papai então já as voltas com fraldas e mamadeiras saiu-se com o que vou dizer. O colega então, jovem avô fresco até lembrou da caixa de charutos e de bombons para reparti-las com seus colegas de trabalho. Na esteira da chegada do familiar herdeiro.  A nota dissonante ficou por conta do graúdo envelope que jazia aberto em dua escrivaninha. O jovem e recente pai enviara duas duzias de fotos do rebento em um exagerado tamanho maior que o postal, todas com dedicatórias exaltando o avô no entender  e linguajar do filho falando pela bôca do neto coisas tais como: “Querido vovozinho, quero logo, logo estar com o senhor e ser seu insepar avel companheirinho. Beijos do netinho querido” e por aí afora. O pior da coisa era um cartão postal de crítica. Um desenho do lobão babando atrás de uma  moita enquanto espiava chapeuzinho de shorts e os dizeres : “Coitado do lobo mau, agora sonha com Chapeuzinho, mas dorme com a vovó!”. Um tremendo mau gosto e mau-caratismo injustificavel que dava repulsa na hora.

Outro evento que carrega na onda o disfarçado e dissimulado processo inconsciente de retenção são os chamados bailes da terceira idade. Longe de parecer ser uma despretenciosa diversão tudo mostra e carrega a pecha de gueto, apartheid ou reduto socio-discriminatório para um entrevero que não pode ter uma cota geriátrica. Mil perdões para quem gosta e abraça o acontecimento, mas é tudo uma forma de engôdo sem maior provisão de felicidade e congraçamento social.

 Retenção da intocável juventude e fugaz percepção do esvaimento da continuidade são partes integrantes desta caminhada sobre as quais nada podemos fazer a não ser enquanto somos eternos e invulneráveis...  Fluindo e acontecendo como um conto que só pode ser  escrito depois te ter acontecido.  

Hoje após ter avançado na travessia rememoro certos pensamentos e idéias do criador do existencialismo Sartre e suas colocações sobre a velhice e os  conceitos de sua companheira Simone desenvolvidos em A Velhice. Dentro do seu existencialismo dava incertas de razão.

 

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