A maleta

A MALETA

 

Não saberia dizer como a idéia nasceu. Quando menino já pensava algumas vezes nisso. Quando rapazola a idéia transformou-se em sonho. Primeiro um sonho hippie e colorido em dolaresque dava a volta a volta ao mundo enlouquecido passando por Woodstock e  Monterey Pop. Mais adiante, já inserido na multidão yuppie do mercadão financeiro de uma grande capital cobiçava uma passagem pelos  magnificos relvados da casa de campo de Gatsby ou  pelas calçadas do Champs. Talvez até jogando pedrinhas da ponte Carlos IV. Bom gosto certamente tinha e só faltava o dinheiro. Tinha entretanto, antes de qualquer coisa encontrar a maleta preta recheada de dólares.

Permanentemente em meus dourados sonhos encontrava a ambicionada maleta preta na despretenciosa e apressada corrida num velho, inimaginavel e fedorento taxi de quatro portas que pegava a unha, premido pela pressa e traído pelo relógio em meio a multidão enorme e informe como uma massa viva sob os viadutos da metrópolis onde ganhava a vida.

O mercado financeiro roubou-me nos meus primeiros anos de trabalho um sonho mais descompromissado com a realidade.  Pessoas apressadas em seus ternos brilhantes de cinza e preto ( nunca entendi  porque não ocorriam ternos de outras cores)  no quotidiano desfilavam com maletas pretas no formato slim, muitas incrementadas com fechaduras com segrêdo.

Negócios eram comumente concluidos com o bater do martelo em almoços de negócios tudo como estabelecia o figurino do mundo financeiro moldado numas décadas que muitos gostariam de esquecer. Um executivo que merecesse esta sagrada denominação não poderia dispensar um kit yuppie que incluia uma calculadora, três hidrográficas coloridas e um mini K-7, tudo acondicionado na maleta preta tipo 007.

Existiam sempre pendentes no ar as perguntas que não queriam calar.  A questão número  um dizia respeito à origem da maleta. Quem seria o dono da maleta com aquela quantia, talvez um milhão de dólares ? Seria o produto de um assalto ? um desfalque executivo numa instituição financeira falida ? Talvez fosse pagamentos da Máfia, da Cosa Nostra ou do jogo do bicho. Serviço secreto israelense ? Quem quer que fosse viria com unhas e garras em cima da maleta e não deixaria a coisa barata. E se o dinheiro fosse marcado ? Acho que dólares não podem ser marcados pelo Tesouro, afinal não entram em circulação.

Até que um dia acontecera. A roda do Destino resolvera mudar os caminhos naquela tarde na hora do almoço. Acenara desanimado para o taxi pm velho Opala de quatro portas. Pensou a princípio que o cabeludo atarracado com uma boina de couro cru enterrada na cabeça e óculos escuros espelhados nem o tivesse visto, mas não. Brecou mais que depressa. Apressadamente entrou no taxi antes que o indivíduo mudasse de idéia.

-Pra onde patrão ? A voz era rápida e alta, com um sotaque nortista.

-Galeria Central ao lado do Teatro Municipal !

-O Sr. manda patrão, o Sr. manda.

Toda a frente do veículo era sui-generis, alem da imaginação de qualquer mortal. Umda no chão uma maleta preta a quantidade enorme de objetos inúteis se espraiavam em todos os cantos e arestas nos quais era possivel pendurar-se algo. Difícel era olhar para tudo. Uma cabeça de macaco pendurada no retrovis com um colar de dentes – seria um empalhado ou um brinquedo ? Dezenas de adesivos pregados pelo console, porta-luvas, som de um antigo e enferrujado toca-fitas K7, cadernunhos, espelhinhos, decalques, bottoms e várias traquitandas. O câmbio era daquele tipo que termina numa bola colorida que se ilumina quando o breque é acionado. Uma placa de madeira trazia a seguinte frase entalhada: ‘Meu nome é Joilson’.

Joilson descansava as costas largas sobre um revestidor de bancos de bolinhas de madeira talvez com a finalidade de massagear as omoplatas enquanto dirigia vendo o mundo através de enormes óculos escuros espelhados.

Cansado deixei pender a mão esquerda adiante do assento que tocou em algo frio e metálico. Inclinei o corpo a frente e então a vi. Lá caída no chão estava a maleta preta de courino com frisos metálicos de aluminio e duas fechadurazinhas. Ato contínuo puxou-a para si e cobriu-a com a jaqueta, suando e com a cabeça a mil.

Certamente a maleta não poderia ser entregue ao motorista.  Aquela dinheirama nas mãos do homenzinho ao volante, que vociferava impropérios pela janela exalando rolos de fumaça e impaciência pelo meio do trânsito poderia ser uma sentença de morte para o mesmo.

Joilson agora falava sem parar com ele...O Sr. tem jeito de gente fina, de um doutor. O povo aqui é muito mal-educado. Não há nem comparação com a Alemanha. Berlim, Munique Dusseldorj...

-O Sr. está espantado não é ? Como pode um ignorante motorista de taxi como eu ter conhecido tudo isso não é ?

-Já fui jogador de futebol ! Não fui famoso , mas depois de um mês de profissional tive um contrato para o futebol europeu...Tive muito dinheiro, mas gastei tudo, perdi tudo. Até minha mulher se mandou. Hoje tenho que ddirigir um taxi para ganhar a vida.

-Compreendi meu camarada ! Olhe, pare por aqui mesmo Joilson...Estou super atrazado.  Apontou para a calçada jogando uma nota de 50 no banco da frente..

O taxi parou e então despencou pela porta levando numa mão a maleta coberta pela jaqueta. O taxi arrancou num sentido e ele correu para o outro.

Questionava minha própria atitude. Não, não era a atitude correta. Estava a me apoderar de um dinheiro que não me pertencia . Se fosse o produto de um roubo, de um coleção de apostas de jogos ilegais, subornos ou seja lá algo similar era errado. Se fosse para sustentar algo errado, seria errado ? Um milháo de dólares não era prenuncio de boa coisa. Senti que deixaria a decisão para o grande momento. Sim, quando chegasse a hora a vida me ditaria a atitude, direcionaria meu código de conduta. Sim, Deus certamente não jogaria dados com o mundo.

Como levaria embora a maleta ? a maleta teria que ser transportada pelas ruas em meio a uma anônima multidão de pessoas que se transformariam em uma multidão de feras prontas a dar um bote se desconfiassem que a inocente maleta continha um milhão de dólares. Uma selva de pedra a ser vencida.

Como guardaria a maleta ? Certamente não seria num banco. Lembrava de ter lido sobre contas secretas na Suiça ou algo assim. Será que o incidente vazaria nas manchetes ? “Gorda bufunfa se evapora de dentro do taxi”. “Retrato falado do gatuno do taxi milionário”. Espere...Um retrato falado ? Teria que modificar o rosto. Talvez usar uma barba e uns óculos redondos como o John Lennon talvez. Melhor seria uma temporada no exterior. Buenos Aires, Paraguai. Nem precisaria de um passaporte, só teria que se prevenir na passagem pela fronteira.

Como agir sem despertar suspeitas ? Um milhão de dólares podem modificar uma vida ? Podem e claro. Dinheiro transforma a vida das pessoas por facilidade de acesso a bens materiais, cultura, tecnologia,  proximidade de pessoas que podiam até ser distantes anteriormente, Evidentemente podiam trazer muitos problemas. Podiam atrair a cobiça, a inveja e a maldade do ser humano com olhos dilatados por um punhado de notas. Dólares aos punhados  podem ser uma arma mortal. Os bang-bangs italianos apregoavam isto

A nota de um milhão de libras era uma cédula lendária e muito rara emitidas pelo Banco da  Inglaterra como garantia de um empréstimo durante o Plano Marshall. O escritor Mark Twain num conhecido conto juvenil que vi na TV e de que não me esqueci falava da aposta entre dois excentricos milionários que divergiam sobre o uso da nota por um  miseravel londrino. A nota é passada para esse como se fôra uma esmola. O mendigo prospera porque não consegue gastar, trocar nem usar a cédula. Há várias pessoas que ao verem a nota dão-lhe crédito ilimitado e tudo o que quer comprar. Alguns até pagam apenas para ver a nota de um milhão. Como seria com quem tivesse um milhão de dólares para esbanjar ?

Seria melhor manter o emprego que tinha como uma forma de disfarce ? Andar a pé e usar umas roupas surradas como uma identidade secretaa antes que algum mano lhe encostasse uma faca na barriga num beco escuro ? Aí continuaria a ser um Zé meia-boca Ninguém.

O taxi o deixara na grande avenida paralela ao viaduto que alcançava o monumental Teatro Municipal. Ali enveredei rapidamente por ruelas apinhadas de lanchonetes, restaurantes populares, capelinhas de kibe e churrasco grego. Certificou-se que não fora seguido ou insistentemente observado. Sentia-me um verdadeiro estrangeiro.

Desceu o calçadão frente ao teatro e alcançou a estação do metrô. Não pretendia voltar ao trabalho naquele dia, divisor de águas da sua vida. Desceu as escadas rolantes e tomou o trem. Tinha certeza que ninguem o seguira. Ninguem olhara com uma intensidade maior para ele.

Acho que fora simples. Agora era ir para aquele cubículo onde habitava e dedicar toda sua atenção aos planos aguardavam sua realização. O quarto-sala o aguardava Sentou-se na cama turca, pois no ambiente só havia espaço para duas camas. O colega de residência estava no emprêgo..

A maleta tinha dois fechos direito e esquerdo. A fechadura tinha tres rodinhas que acionavam números como um segredo de cofre, porem nada que resistisse a uma boa e sólida chave de fenda grande. Depois bastava puxar as travas com os polegares e .....CLAQUE !!!! Os dois fechos abriram-se sem nenhum esforço !!!! A maleta não estava fechada com os segrêdos.

Levantou cuidadosamente a tampa.Dentro uma caixa plástica opaca de cor azul. Abriu a caixa de plástico. No seu interior um embrulho quadrado de papel laminado.Abriu finalmente o pacote e dele retirou o sanduiche de mortadela  que fora esquecido com a maleta por algum boy descuidado no taxi. Neste dia algum xeroqueiro ia ficar com fome . Na bolsinha da maleta um bilhete dobrado. Abriu e leu numa escritinha miuda e trêmula : “não esquece de lavar a caixa. Tua mãe.