O pequeno Grande Homem

 

Não é possível deixar de enxergar nele um grande homem. Quem conviveu com o jovem Alcione de largo sorriso lembra suas atitudes humanas e francas no tratar e dirigir-se aos amigos numa conduta de uma amizade dedicada e pronta a estender uma amizade correta e perfeita.

 

Nelsinho o colega de meio século sempre acompanhou Alcione desde os bancos escolares do Canadá. Nelsinho o amigo de todas as horas e aventuras. A universidade deu caminhos diferentes. O Nelsinho tornou-se um Politeco e o Alcione um Mackenzista. Isto algumas tardes na casa de Alcione, entretanto os uniu mais ainda.

 

Nós três nos conhecemos quase ao mesmo tempo. Alcione que era amigo de Nelsinho que se encontravam todos na Alexandre Martins, a rua do bonde 39. Chegar à casa do Alcione era simples. Era só não descer do bonde que virava nos trilhos da Pedro Lessa atravessava o desconhecido Canal 6 e continuava até o descampado do Macuco. É claro que não havia a Av. Estuário e nem os armazéns do cais eram visíveis ainda. Via

 

Tudo que se via era uma imensa várzea que era como se chamava um descampado onde o mato crescia rasteiro. Atualmente não se encontra mais uma várzea, eliminada da cidade pela especulação imobiliária ou invadida por algum grupo sem-terra. Ali estava a várzea com a casinha de Alcione que nem número tinha e do outro lado adjacente um quartel. Um quartel de exército que às vezes saiam a cavalo por aquele recanto remoto e esquecido.

 

Não sei como comecei a ir à casa de Alcione. Não havia passado ainda no temido vestibular. Sempre muito bem recebido por sua mãe constantemente atarefada e absorvida nos serviços caseiros. A conversa ia longe. Durava à tarde comentando sonhos e projetos. Alcione pegava um velho radio portátil e desligava da cozinha levando para o quarto sem nem pedir licença a mãe ou a irmã mais nova Lúnia. Na casa quem cantava de galo eram os homens. O pai quase nunca estava lá, sempre trabalhando.

 

Certa ocasião houve um aniversário. Não me ocorre de quem foi. A casinha de Alcione foi pequena para tanta gente. Todos os amigos, o Nelsinho, o rapaz da Farmácia, o Renato...

 

Naqueles tempos, festa de pobre era uma fartura. Verdade que era. Sempre bateladas de brigadeiros, olhos de sogra e casadinhos enquanto as coxinhas corriam abundantemente entre canecas transbordantes de chope bombeados de tinas com sifões alugadas direto nas distribuidoras. Festa é festa.

 

Certo momento Alcione me apontou um provecto senhor. Era calco e sexagenário.

 

-Aquele é o Fulano. É um poeta santista conhecido... Tem livros publicados.

 

Lembrei-me dele, principalmente por suas poesias carregadas de erotismo. Recordei em especial de uma delas em que homenageava uma mulher (uma namorada talvez?) falando de seus seios. O nome da poesia era Redondos, redondos... Que malandro hem?

 

Alcione estava alijado em uma pensão no Bairro da Liberdade. A Liberdade se tornara na época um bairro inflacionado de estudantes. Isto ocorrera porque o bairro carregava os três maiores cursinhos pré-vestibulares que eram o Anglo Latino, o Nove de Julho e o Brigadeiro.  O povo estudantil espalhava-se por aquele bairro coalhado de repúblicas e pensões.

 

Morando num quarto com amigos na pensão japonesa Alcione parecia muito contente e bem instalado. Era tão engraçado o Alcione circulando pelo quarto com um vasta roupão de lapelas vermelhas que era usado por todos que por lá passavam.

 

-Isto aqui é de uso comunitário, dizia Nelsinho.

 

Frequentemente Alcione se encontrava com Nelsinho e outros amigos. Até o Sarito ia junto. Tudo terminava em grandes bebedeiras no Conjunto Residencial da USP. O Nelsinho morava lá. O Alcione havia morado num grande prédio na Baixada do Glicério, um reduto de malandragem e estudantes.  O prédio abrigava uma fauna de drogados e desocupados. Não imagino como Alcione podia estudar ali. No andar extremamente sem controle morava na época o cantor Antônio Marcos. Foram tempos antes de se envolver com a Vanusa. Uma multidão de bandas e roqueiros desfilava pelo edifício e as brigas às vezes explodiam com móveis e objetos sendo projetados pela janela.

 

O Mackenzie era uma escola dividida. Reduto explosivo de grupos da extrema direita como o CCC, MAC e FAC e também de estrema esquerda como a COLINA e a ALN. É que havia uma grande diferença. Um divisor de águas A.68 e D.68. Não havia grupos armados, de guerrilha urbana quero dizer. E Alcione conseguia ter grandes amizades nos dois lados da medalha. Seja pelos botecos da Rua Maria Antônia até virar a madrugada entre os neons da Rua Major Sertório e a vanguarda da Bossa Nova no João Sebastião Bar.

 

Era sentar na calçada e ver passar por ali grandes e monstruosos nomes da MPB. Ali entravam Pedrinho Mattar e o garoto Chico Buarque, estudante de Arquitetura da Universidade Mackenzie.

 

Isso só engrandece o respeito e a admiração que tenho pela sua cultura e compreensão do mundo em que nos formamos. Prefiro que você mesmo o diga Alcione no texto que é um dos primeiros e-mails de você que me chegou às mãos. Grande abraço e respondo a esta grande amizade de tantas décadas:

 

“Eu tive um professor de português no Curso de Vestibular Anglo Latino chamado Hildebrando que falava que a redação deve ser a expressão da palavra”. Eu me lembrei do professor, pois lendo as suas crônicas parece-me que você esta falando e não escrevendo devido à clareza da escrita que é quase uma conversa que prende demais a atenção do leitor. Quem bom rever alguns acontecimentos que estavam um pouco perdidos na minha memoria como se estivessem numa caixa fechada há muito tempo e que estou abrindo agora. Até para mim que sempre fui uma perna dura para dançar o bailinho no sábado ou domingo era uma delicia e, ainda mais ouvindo ou dançando My Love For You com Johnny Mathis, a Seleção das Musicas de Ray Connif, Neil Sedaka e Paul Anka. Que saudades! E o Café do Atlântico onde se tomava um cafezinho que era acompanhado de um cigarro e uma boa hora de prosa com os amigos. Eu me lembro de ter assistido uma palestra na Faculdade de Filosofia da USP sobre a mais provável interpretação do filme 8 ½ de Federico Fellini. Era um filme complicado que cada cinéfilo dava a sua interpretação. O Dr Jivago que eu assisti no Cine Republica em São Paulo teve como protagonista o galã Omar Sharif com vasto bigode, que fez com que a juventude daquela época começasse usar bigode, inclusive eu. Casei com bigode em 1970 raspando em meados de 1990. Filmes que me marcaram E o Vento Levou com Clark Gable e Vivian Leigh, Os épicos 10 Mandamentos e Ben-Hour ambos com Charlton Heston. Realmente o ano de 1964 que se iniciara turbulento terminaria no mesmo ano dia 31 de março com a revolução. Triste fim de ano. Cheguei a ler muitas crônicas escritas para o jornal A Tribuna pela Lydia Federici intituladas Gente e Coisas da Cidade. Na hemeroteca que fica ao lado do Teatro Municipal de Santos tem todas as crônicas arquivadas. As crônicas eram gostosas de ler como se fossem um café pingado com pão com manteiga que a gente diariamente tomava na padaria esquina da Rua liberdade com a Condessa de São Joaquim sendo esta a rua onde ficava a minha pensão. Ainda me lembro de quando houve a tentativa de preservar como memória da Cidade de Santos o casarão do canal 4 que pertenceu a Lydia. Não foi possível conter a especulação imobiliária e hoje no lugar foi construído um edifício. O professor de mecânica do Curso Anglo latino se eu não me engano em abril de 1961, muito preocupado disse ao iniciar a aula... Estados Unidos e Rússia estão prestes a declarar uma guerra nuclear devido às instalações de misses em Cuba. Foram 13 dias de tensão mundial até que Nikita kruschev atendeu ao pedido John Kennedy pela retirada dos misseis de Cuba em troca da retirada dos misseis da Turquia, Grã Bretanha e Itália pelos Estados Unidos. O meu auge da leitura dos Gibis de super heróis e cowboys foi a partir dos anos 50 até 60. Os meus preferidos eram o Mandrake, o Capitão Marvel e o Fantasma. Era uma época de sonhos! Não sei o dia, mas me lembro de muito bem que em novembro de 1961 eu estava passeando com uns amigos na Av. Paulista quando se houve muitas sirenes. Muita gente correndo e nos fomos acompanhando a multidão que ia em direção a Esquina da Alameda Lorena com Casa Branca. Não foi possível chegar perto, pois os policiais do DOPS não permitiram. De longe vimos um homem ensanguentado. Era Carlos Marighela um dos guerrilheiros mais procurados e que ali tinha sido abatido com vários tiros numa emboscada pelos delegados Fleury e Tucunduva. Era o fim do homem que tinha escrito o Manual do Guerrilheiro Urbano. O Orquidário de Santos é um dos poucos espaços junto com o Horto Florestal onde podemos sentir o que restou de espaço verde da cidade que foi devorado pela desenfreada construção da verticalização. É uma pena. Confesso que aparentemente para os outros eu era alienado, mas não era assim, já que eu declinava em me expor politicamente porque tinha amigos de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP e amigos de direta no Mack. A minha posição politica sempre foi social, claro não podia ser diferente e, as minhas ponderações eram sempre feitas de maneira indireta para não ferir meus amigos tanto de direita como de esquerda, que ficavam muito estressados quando esse assunto fazia parte de uma conversa, onde os pontos de vista eram totalmente antagônicos. Dos cinemas de bairro lembro-me do Cine Brasília, Macuco, Santo Antônio, São Jose, Cacique, Popular, Marapé, Campo Grande, Yporanga, Indaiá, Independência, Caiçara, Praia Palace e Astor. Os mais frequentados por mim foi o Santo Antônio e o Popular onde assistia domingo à tarde a matiné com a série do Flash Gordon, Tarzan e os filmes de Super Heróis. O filme que mais assisti foi em São Paulo 2001 Odisseia do Espaço. Foi uma ficção cientifica que está se tornando real com o avanço da tecnologia da informação, aplicada às diversas áreas do saber. “

 

Abraços

 

Alcione

 

Amigo Alcione, grato por ser você o grande amigo que tive o privilégio de continuar a conviver nos bons momentos de nossas vidas.

 

 

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