O repicar melódico dos badalos de sinos dour



No colégio costumávamos, graças à iniciativa do meu professor de português, realizar semanalmente o que ele chamava de Sessão Literária. Ele fazia um grupo de alunos escreverem composições e na aula costumava entre as mesmas indicar uma para ser lida e comentada. O grupo era formado pelo conjunto de alunos de uma mesma fileira de carteiras.Cada fileira  assumia o halo  de uma confraria. Uma espécie de sociedade de poetas ou falange de Michel Quoist. Nosso mestre era um padre.
Nossa fileira era unida e constituía o segundo quadro dos três times de futebol da classe. As minhas aptidões para a composição literária eram conhecidas e logo me tornei o "fabricante" de composições em que meus companheiros não eram pródigos tanto quanto eu num bate-bola.
Entretanto a troca dava certo. Eu fazia composições e era admitido nos jogos do segundo quadro. Tinha o cuidado de escrever composições diferentes, pois o mestre era esperto e conhecedor do estilo.
Quando estávamos próximos à semana do Natal, o mestre deu um tema de redação sobre o Natal e anunciou que pediria a um aluno de cada fileira de carteiras da classe  para ler uma e nos deu uma semana de prazo para faze-la. Era, entretanto uma semana muito atribulada e eu realmente não tinha tempo para pensar em escrever.
Quando chegou a véspera da data marcada eu havia feito apenas uma redação e minha fileira de fregueses eram sete colegas, que provavelmente nada tinham escrito. Ocorreu-me então que o mestre havia dito que leria apenas uma de cada fileira, assim sendo resolvi fazer um truque. Escrevi sete composições iguais e pensei que mais tarde teria tempo para faze-las e substituí-las antes que tivéssemos que entrega-las para nota. Estava resolvido o problema. As redações então começavam com a frase "Já se ouve o repicar melódico dos badalos de sinos dourados..."  E ia por ao afora.
Chegado o dia da sessão literária, o mestre entra na sala com seu impecável guarda-pó, atirado sobre a batina surrada  esfregando as mãos. Não carregava nenhum livro. Olha fixamente para a classe e anuncia:
-Agora tenho uma surpresa para vocês. Sendo esta a última sessão literária do ano resolvi que hoje escutarei a todos vocês. Lerão suas redações e terei o maior prazer em ouvi-las.
Anunciada a sentença,  postou-se em sua cátedra materializando uma inconsciente postura investigativa de um Hercule Poirot tupiniquim.
Diante do exposto suei frio, pois sabia muito bem o que iria acontecer quando fosse a vez da minha fileira ler. Toda a tramóia seria descoberta. Desejei que o chão se abrisse e fôssemos tragados pela terra, mas tal não se deu, assim sendo fiquei firme. Meus colegas nem imaginavam o que se passava é claro. Fiz mentalmente a conta: eram 4 fileiras de 7 alunos, portanto 28 redações. Dava tempo porque eram duas aulas juntas num total de 80 minutos o que dava mais de 3 minutos para cada um.  Nossa fileira era a última e aguardei nervoso e preocupado.
Quando o mestre Papagera (um apelido é claro do temido Pe. Geraldo) chegou a nossa fileira faltavam 30 min para a sineta salvadora e eu ainda não tinha uma solução para o problema que se avolumava no céu em forma de tormenta preste a desabar sobre nós.
Pense, pense dizia a mim mesmo. Há um montão de minutos em 30 minutos. Ache a saida.
-Luiz Antonio! O Papagera chamou e puxou o conhecido pigarro sua marca registrada.
-Sim, professor, atendeu Luiz.
-Leia sua história.
Luiz então começou: ‘Já se ouve o repicar melódico dos badalos de sinos dourados...’   E foi por aí afora. O Padre lhe deu os parabéns quando terminou. Mal sabia ele o que o esperava
-Pérsio de Amdrade. Sua vez.
O Peru, isto é, o Pérsio levantou-se desligado como um peru na véspera de Natal.
-Leia seu conto.
O Peru não quis nem saber. Largou brasa. ‘Já se ouve o repicar melódico dos badalos de sinos dourados...’
O rosto do Papagera tornou-se mais vermelho que o casaco do Papai Noel. Só não interrompeu o Peru porque teve um acesso de pigarros. Peru terminara a leitura e sorria tanto que se podia ver até o pré-molar de ouro.
-O Sr. está me fazendo de palhaço Sr.Pérsio. O seu ato indecoroso não merece menos do que um zero e uma advertência em sua folha escolar. Saiba que tomarei isto como uma ofensa pessoal. Sente-se e fique calado. Conversaremos sobre isto mais tarde.
O Papagera havia se recuperado um pouco do choque. Arrumara a batina sob o guarda-pó e consultara a lista onde acabara de anotar algo.
-Sr. Alfredo Paiva!
O Fredão levantou seu 1,90m dominando a sala. Não muito, pois era visível o seu tremor. Parecia um arranha-céu prestes a desabar.
-Leia Sr. Alfredo, estou esperando.
O Fredão com uma esperteza inversamente proporcional a altura atacou gaguejando como sempre: ‘Já se ouve o repicar melódico dos badalos de sinos dourados...’
Desta vez Papagera não titubeou e nem foi apanhado de surpresa.Interrompeu a narrativa esmurrando a mesa.
-Tudo o que disse ao Sr. Pérsio também vale para o Sr.  Zero, está ouvindo, zero pela sua fraude e descompostura!
Eu já não sabia se ria ou se chorava Consultei o relógio. Faltavam 15 minutos para tocar a sineta salvadora que anuncia o fim daquilo tudo. Infantilmente fazia cálculos. Há um monte de minutos a passar. Se ele demora 3 minutos com cada um, só poderia atender mais 5 alunos.
-Sr. Synésio! A voz interrompeu meus pensamentos.Recolhi-me entre os meus braços e afundei-me na carteira.
Levantou-se outro gigante, mais alto que Alfredo. Porém duas vezes mais largo. O sobrolho de Papagera tremia O dedo em riste apontava para ele como uma Bereta. Parecia Bond na frente de Blofeld. Pensei que fosse dizer ‘levante as mãos’ mas simplesmente perguntou: ‘Badalos de sinos dourados? ’
-Sim Professor, sussurrou o Synésio.
-Zero. Pode sentar. Próximo.
A mesma cena repetiu-se por mais três vezes até que ele chamou-me. Levantei-me com duas folhas nas mãos.
-Badalos?
Engoli em seco e sem responder olhei para o papel e comecei a falar com voz firme e pausada:
A neve já desce seu manto branco sobre as calçadas estreitas das casas gêmeas de tijolos avermelhados enfeitadas por pinhas e graciosos papais noéis de madeira. O gelo parece formar bonecos entre os latões vermelhos encostados nas escadas de saída para as calçadas onde gente encapotada corre apressada...
Foi por aí afora enquanto o mestre ouvia em silêncio boquiaberto. Quando terminei falou então:
-O Sr. está de parabéns, pois acabo de ouvir um dos mais belos contos em meu exercício de professor. Além do mais é reconfortante saber que alguém se interessou e trabalhou em meio à decepção que tive hoje.
-Diga-me, já leu Dickens?
-Sim mestre.
-Kipling?Twain?
-Sim mestre. Respondi admirado do Padre conhecer e gostar deles. Sentia-me arrependido pelo que causara.
-Traga-me sua composição. Quero leva-la para casa e ler mais uma vez.
Avancei e entreguei-lhe as duas folhas. A partir daí foi o caos.
O Padre olhava para as duas folhas brancas como a neve, a beira de um ataque de nervos e simultaneamente a sineta anunciando o término das aulas como o toque salvador da cavalaria americana. A classe levantara-se e acotovelava-se pela porta esvaindo-se pelo corredor. Repentinamente saí atrás dos outros deixando para trás Papagera, os colegas e os badalos de sinos dourados.
Só tornamos a ver o Papagera dois meses depois quando terminou o ano letivo e aquela etapa de nossa vida escolar. Ninguém fora reprovado e estranhamente achei que ele me dera um 10 e meus colegas, embora com notas menores haviam todos passado. O Pe. Geraldo fora convidado a ser o paraninfo da turma na entrega dos certificados em sessão solene.
A sessão foi uma troca de gentilezas entre professores e diretores e o mestre fez uma saudação bonita e carinhosa para nós. Quando a sessão estava para fechar houve a costumeira rasgação de seda com a tradicional homenagem dos presentes e lembranças aos homenageados.Eu havia sido escolhido para entregar a sua lembrança. Uma caneta tinteiro com seu nome gravado a ouro.
Dirigi-me a mesa da comissão e trocamos um longo abraço. Ele me agradeceu e colocou nas minhas mãos uma caixinha pequena dizendo-me em voz baixa: ’Também lhe trouxe uma lembrança’
Fiquei surpreso e mais tarde enquanto saía do teatro em companhia da família abri a caixinha que continha um cartão onde li:
Parabéns
Eu sabia desde o início.
Do seu velho professor,
Pe. Geraldo
Dentro da caixa uma miniatura de sinos natalinos. Dourados e com badalos.


 

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