Parabéns a você

 

PARABÉNS A VOCÊ

O táxi preto estacionou junto a calçada a um aceno discreto da mulher.  O taxista, um senhor corpulento de estatura média, desceu para abrir a porta pelo lado de fora num gesto inusitado e ela subiu acomodando-se no assento traseiro e recostando-se no estofamento macio daquele automóvel antigo.

-Pois não ? disse uma voz grave.

-Hotel Miramar, disse ela.

Enquanto o automóvel se perdia diligente no trânsito coalhado de outros veículos, seu pensamento divagava. Acho que é um Buick. Sim, antigo assim deve ser um Buick. Não importa. Gosto de carros antigos. Gosto de pessoas educadas. Acho que ele desceu ao ver o prédio de frente luxuoso em meio ao jardim. Os últimos vestígios da tarde se desfazem. É um lindo por do sol. Cores douradas e tons de um brilho avermelhado que se refletem nesta orla de mar e filtram-se entre os galhos frondosos dos chapéus de sol. Quantas pessoas a movimentarem-se neste calçadão  imenso. Pessoas de bicicleta, desafiando a brisa da primavera. Está escurecendo. O dia terminará dentro em pouco dia tão especial para mim. Dia de meu aniversário.

O rádio do carro toca baixinho e suave. Ainda bem, detesto músicas altas e estridentes. Seis horas da tarde. Esta hora é uma velha conhecida minha. Agora, neste momento arma-se uma bem urdida trama. Como se todas houvessem combinado, as estações de rádio colocam no ar coisas flutuantes como um piano ao cair da tarde, locutores recitam poesias e trechos de textos românticos que evocam romances não realizados. Toda uma atmosfera para nos envolver está forjada. Lembranças de amor despertadas pelo mágico poder da palavra.


O carro passa por um canal que escoa a água da chuva para o mar. Maria olha para a pontezinha de pedra agora vazia. Ainda é a mesma. Desgastou-se um pouco mas é a mesma. Haviam ido na sorveteria perto da fonte luminosa e caminhavam pela calçada em frente ao mar aproveitando os últimos vestígios da luminosidade.  Pararam na ponte e ela retirou um lencinho da bolsa para limpar os últimos gelados do creme de morango dos lábios. Osvaldo a segurava com cuidado pela cintura acentuada do vestido muito azul. Estavam sozinhos sobre a ponte  Osvaldo estava tão bonito e elegante e tinha os olhos brilhantes de esperanças e promessas. Viu um passarinho batendo as asas pousado a uma distância tão perto deles e o murmúrio das ondas repercutiu em seus ouvidos.

Foi quando ele a tomou nos braços e a beijou apagando todos os instantes da Terra para que somente aquele existisse. Pensara um dia que seria assim e o fora. Onde estaria Osvaldo agora ? Viria beija-la também neste dia tão especial ? Não, não poderia esperar isto. Sei que tu não podes amor.

O carro estacionou na entrada suntuosa e ampla. Maria subiu sem pressa as escadarias  até o hall de entrada onde jovens com um uniforme cinza movimentavam-se em meio as pessoas saindo e entrando. O salão de chá ? É no último andar, respondeu-lhe um senhor num impecável terno preto e camisa branca. Estava atrás de um grande balcão envernizado frente a uma parede repleta de escaninhos. Pode tomar o último elevador, disse-lhe em meio a um sorriso. Dirigiu-se para lá, os passos firmes, sentindo os saltos afundarem no tapete espesso. O rapaz uniformizado abriu-lhe a porta e indicou-lhe o interior com um gesto. Maria teve a impressão que ele a observava discretamente e sorriu-lhe em resposta.


O salão de chá no último andar era acolhedor e agradável a um só tempo.  A ampla entrada com a mesa de mogno onde a moça de uniforme azul e vermelho sentada numa cadeira estofada em veludo procurava o nome no livro preto de reservas. Sim, aqui está. Uma mesa para as 18:15 h. O maitre vai indicar-lhe a direção. Pode acompanha-lo.

Atravessou quase metade do salão com o homem alto e elegante num dinner branco a sua frente. Ele afastou a cadeira de madeira clara torneada com assento e encosto estofados de veludo cor de ouro envelhecido de reposteiro alto para que ela se sentasse. Cruzou as pernas e colocou as mãos entrelaçadas no regaço e agradeceu com um sorriso. Ele fez uma mesura, sabendo que ela esperava outras pessoas  e dizendo:

–Tenha uma boa noite, retirou-se. Maria arrumou uma mecha nos cabelos num gesto tipicamente feminino e deixou que o olhar passeasse pelo salão reconhecendo o ambiente.

As mesas eram simpáticas e redondas de muito bom gosto. Ladeadas por 8 cadeiras como aquela em que estava sentada. Cobertas por toalhas brancas, rendadas. Tão bonito de ser ver. Atualmente os lugares públicos não usavam mais toalhas de pano. As xícaras de porcelana com motivos decorados em azul celeste sobre o prato cuidadosamente dispostas. Os talheres de muito bom gosto e o que mais lhe chamou a atenção, os guardanapos de linho. Há muito que não via alguém usa-los. Sem falar do açucareiro de metal também decorado e dos galheteiros de vidro fino. Maria não ficaria mais surpreendida se o chá fosse servido num samovar.


A luz de lustres de cristais vertia do teto alto numa fímbria discreta e suave. Não eram as costumeiras lâmpadas incandescentes. Os lustres dispostos em um teto branco combinando com as colunas de um mármore vítreo encimadas por espirais e as paredes cor de creme suave com espelhos de pinturas antigas davam uma atmosfera íntima e antiga. Uma intimidade cúmplice de anos dourados. Não faltava nem o velho Steinway preto de cauda sobre um palco circular forrado em feltro vermelho atrás de Maria no canto. Maria olhou o jovem pianista que sentara-se no tamborete.

O jovem de terno azul-marinho, os cabelos pretos divididos do lado direito olhava para ela. Acho que ele parece olhar para mim. Lembra muito o Osvaldo. Gostaria tanto de poder dançar. Ser rodopiada pela pista, os ombros estreitados e seguros por mãos firmes e fortes. Voar ao som de uma música envolvente. Olhos de ternura e amor. As faces aquecidas por  um rosto terno e apaixonado. O pianista tocava agora a Tristesse opus nº 10 e Maria estremeceu ao ouvir aqueles acordes que conhecia tão bem.

Uma garota de dezoito anos. Fora uma ocasião tão importante para ela. Entrelaçada de sonhos e alegrias. Via perfeitamente o vestido branco de tule e organdi com o ramo de flores preso a cintura. Sentira-se etérea. É isso, leve como os pássaros que tanto gostava. A orquestra do seu baile de formatura fora maravilhosa, tocavam como anjos. Aquela música dançada nos braços de seu pai embalada pelos acordes harmoniosos e que agora trazia tantas lembranças.


Garçons passando entre as mesas com bandejas decoradas e bules prateados. Era bom de se ver. Sentia prazer em lembrar de dias tão belos e importantes. Uma sensação de ter vencido etapas do caminho. As mãos de dedos delicados tocaram a mesa. Era real. Era tudo real. Sentia-se linda e importante entre aquelas pessoas elegantes. A mesa estava vazia mas não estaria por muito tempo. Uma moça não deve ficar sozinha a uma mesa. Sua mãe sempre lhe dissera isso. Não é próprio. Não é de bom tom. Haviam muitos casais ao seu redor rindo discreta e alegremente. Muitos dirigiam-lhe um olhar as vezes. Será que estou bem ? Bela como todas estas jovens ?

Foi quase que sem perceber, que seu olhar cruzou com uma senhora em sua direção. Sentada a uma mesa como a sua também estava só. A senhora com um vestido preto e um lenço de tons rosa sobre o colo e os ombros a observava com uma expressão que Maria registrou como divertida. Os olhos tinham o brilho vivo e malicioso mas ao mesmo tempo ingênuos e doces. Pareciam diminuir atrás de grossas lentes dos óculos de armação octogonal com a providencial correntinha presa as hastes.

A face era bem cuidada, sem um traço de maquiagem e os olhos traziam ao redor as marcas inevitáveis do tempo, Rugas vincadas que o tempo se encarregara de marcar naquela face que a olhava estática e sem reservas. Quantos anos teria :  Setenta, talvez até mais. Será que sofrera seu tempo? Bobagens Maria. Devia estar aguardando alguém, algum ente querido como ela.

Maria olhou para as mãos da idosa. Dizem que se conhece a idade de uma mulher pelas mãos. Aquelas eram mãos pequenas e entremeadas de veias salientes. O cabelo de tom castanho caminhando para o branco era curto e com mechas encaracoladas. Um leve toque instintivo nos seus, que também eram. A imagem de uma jovem de cabelos claros, muito longos despontou em seus pensamentos. Gostava de pensar naqueles cabelos que as vezes eram transformados em tranças pelas mãos de mamãe. Uma mamãe orgulhosa de sua beleza sob o olhar aprovador do papai. Tranças não eram sua praia. Soltos faziam-na sentir-se mais mulher e mais segura.


A velha senhora trazia duas alianças no dedo esguio da mão esquerda. Creio que deve ser viúva ponderou. Uma anciã viúva e solitária. Pensou com carinho nas mulheres viúvas da terceira idade. Terceira idade, não aprovava esse termo. Aquele rótulo de identificação verbal lhe soava como um epitáfio. A vida tão bela e preciosa era dividida em idades ? Tinha que haver uma primeira, uma Segunda e depois uma terceira, ambientes distintos onde as pessoas transitavam, fazendo coisas próprias de suas idades ? Início, meio e término. Como clubes fechados e privados. O mundo mudava, as pessoas mudavam, mudava tudo ao redor das pessoas. Entretanto nunca deixaria de amar tudo que amava.

A idosa trazia ao pescoço uma correntinha de prata com um crucifixo também de prata. Lindo considerou. Um símbolo cristão. Lindo observou. Como sua fé na espiritualidade e na bondade humana. Viver aceitando as diferenças e respeitando os entes queridos. Amar intensamente. Era tudo que queria no momento. Neste único que vivia. Desejou que a senhora estivesse pensando nisto.

Notou o candelabro sobre a mesa. Tão dourado e tão lindo com suas três velas brancas. Sorriu ternamente. Candelabros são tão românticos. Deitam meia-luz sobre as pessoas, une-as intimamente. Não entendia um jantar a dois sem um candelabro. Tinha uma foto sua feita apenas com a luz de um candelabro. Debruçada a mesa escrevendo em seu diário. Sim, que há de mais nisso, tinha um diário no qual se acostumara a anotar momentos felizes. Era uma expressão de seu lado adolescente que teimava em não ir-se embora. Nem que as vezes fosse para apenas escrever uma frase na letra miúda e redonda : Hoje afinal fez sol.

 Páginas às vezes completamente em branco não fora por aquelas observações tão cheias de simplicidade, retrato do que considerava precioso e importante em seu cotidiano. Como era mesmo aquele filme romântico que vira na TV de madrugada. Ah, sim – O Candelabro italiano. A jovem que viajara para encontrar o amor. Tantas cenas românticas e aquela paisagem italiana tão linda.


Era um campo aberto, coberto de relva sob os últimos raios do crepúsculo. O par deitado sobre a relva falava baixinho, quase num murmúrio porque naqueles instantes eram superiores as palavras. Ela sentia arrepios ao toque das folhas compridas e verdes da folhagem rasteira e ele lembrou que aquilo lhe salvara a vida muita vezes quando era uma mulher primitiva dormindo sobre a terra úmida. Também sentiu-se transportada para outro lugar e outra época.

O campo era entremeado de arbustos rasteiros e ela estava sentada sob uma arvore. A toalha branca estendida a sua  frente com a cesta de vime retangular e alça disposta sobre ela. Osvaldo acompanhava a sua alegria infantil com um meio sorriso nos lábios, Sempre desejara fazer um piquenique. Um piquenique Maria ? As amigas troçavam dela. Sim, um momento no campo em companhia de alguém especial. Agora, estava lá naqueles primeiros dias de convívio.

Uma cidadezinha tosca e antiquada, onde se andava de mãos dadas entre o casario esquálido e romântico, com velhinhas acenando nas janelas com cortinas e vasos. Tudo como sonhara. Carregando um farnel para um piquenique. Farnel ? Que palavra tão estranha Maria. Mas não pode haver um piquenique sem farnel. Passavam pelos córregos de águas correntes e indiferentes aos beijos trocados nas suas margens. Casais como eles. Até parecia que iam todos para lá. Como eles dentro daquela paisagem. Usava aquele vestido rosa e calçara sandálias. Colocara um ramo de flores do campo preso a cintura e um chapéu de palha na cabeça


Osvaldo penteou imaginariamente as mechas de cabelos desfeitos pelo vento sob o chapéu. Recostou a cabeça em seu ombro e olhou para ele. Estava tão bem, tão seguro de si e tão esperançoso. Braços longos a enlaçaram e beijaram-se. Foi neste momento que Maria avistou o passarinho pousado sob o farnel a recolher migalhas com o bico. Agitada apontava a cena e Osvaldo ria sem parar. Começou a rir também. A ave assustada voou e eles tornaram a beijar-se. O mundo parara para eles por um tempo.

Não gostava quando ouvia alguém dizer no meu tempo. Aquele era o seu tempo. Estava e sempre estivera no seu tempo, pois não tinha um tempo antes e um agora. Há quanto tempo estava ali. Um tilintar de vidro trouxe-a de volta a mesa do Café. Algumas mesas tinham seus candelabros acesos agora. Pequeninas chamas tremeluziam e derramavam luzes sobre as mesas. A mesa da velha senhora continuava escura.

O grupo chamou sua atenção porque caminhavam com pressa em direção a mesa da mulher a vindos de trás dela. Andavam rápido e falavam um pouco alto como se estivessem com pressa. Havia uma moça, uma jovem. Um homem aparentando 40 a 45 anos e uma mulher de sua idade ou pouco mais. Havia também outra jovem muito bonita de cabelos lisos e feições delicadas, nariz pequeno e fino. Vinha de mãos entrelaçadas com o homem. um homem alto e forte, o mais velho, com os seus 60 anos fechava o grupo. Colocaram-se todos atrás da idosa.

-Oi Vó, parabéns hem ? Afinal, não é todo dia que se faz 80 anos !

Maria estremeceu ao ouvir a voz da neta, Rosana ecoando em seus ouvidos. Levantou-se e virou para receber o abraço afetuoso da neta. A parede espelhada no fundo do café mostrava agora o abraço das duas.

-Parabéns pra você mamãe ! Seus dois filhos queridos Rafael e Sônia a abraçaram e beijaram. A nora Macleid, a moça do nariz de santo beijou-a e estreitou-a nos braços. Seu genro Manoel, o Maneco sempre tão calado, mas sempre tão gentil para com ela, fazendo-lhe todas as vontades. Sentaram-se todos e a neta disse :

-Sinto tanta falta do vovô . Choro quando penso nele Vó.

Maria enxugou discretamente umas lágrimas que lhe assomaram aos olhos num lencinho que tirara da bolsa e respondeu para si mesma:

-Eu também.

-Chegou há tempo mamãe ? A filha perguntou. Foi um longo momento até que Maria respondesse: -Parece que foi agora. Todos sorriram.