Uma sensação de Realidade

 Uma sensação de Realidade

Só há uma maneira de acabar com o mal:

é responder-lhe com o bem. (Leon Tolstoi)

 

A mídia noticiosa era bem diferente. O Cruzeiro era a grande vedete dos meios de comunicação, bem como A Manchete ou a Fatos e Fotos. Não tinham, entretanto o frisson de provocar a discussão. Talvez até pela apresentação fria e conservadora de uma capa que não enchia os olhos, que não era aguardada para ser descoberta, desvendada e levada para casa e ser lida na poltrona favorita com os pés apoiados no banquinho. Eram magazines informativos e um pouco mais ricos que os jornais da época. Umas atualidades no molde de um Jean Manzon estático daqueles que preenchiam o intervalo que precedia os filmes de cinema.

A Realidade foi mais do que uma revolução. Foi um porta-voz que dizia tudo que queríamos ouvir e pagou um preço bem alto por isto. Pagou com seu próprio desaparecimento o que foi na verdade coerente, pois sua mudança em forma e idéia negaria tudo o que se propunha.

Cada exemplar desde o primeiro que vi chegar as bancas era uma proposta de discussão. Uma discussão insinuada, sugerida quase sem chegar. Colocando em nossas mentes e palavras aquilo que o regime militar queria esconder e porisso a revista o incomodava tanto.

Quando tivemos em mãos o primeiro exemplar de realidade começamos um caso de amor para sempre. A capa inusitada com o rosto de Pelé usando um busby da Guarda Real Britânica em uma clara alusão a sua realeza e a perspectiva de nos tornarmos tricampeões mundiais naquele ano. A polêmica sucedia em reportagens como a entrevista de Ingrid Thulin, O destino de Eva Perón, o santuário de Aparecida e a reportagem documento de Carlos Lacerda. O ensaio de fotos sobre a formação de um feto e seus primeiros dias de vida numa seqüência de cores e luzes nunca antes vista valia pela revista inteira. Era abril de 66

Um dedo num ícone da época: os bastidores do Concurso de Miss Brasil- é a reportagem pobre menina miss em Agosto de 66. A reportagem sobre o General Charles De Gaulle que seria contestado nos dois anos seguintes e pesquisa da juventude brasileira diante do sexo. Realidade começava a incomodar.

Em setembro de 66 o depoimento de um padre que deseja se casar provoca uma discussão em todas as bocas. A incrível foto de Art Kane de uma mulher derramando uma lágrima pela morte do filho é uma verdadeira obra de arte.

A lente de George Love captou o rosto expressivo da moça loira dentro do espaço circular da  lente da lupa estampada na capa da Realidade nº 10 de Janeiro de 67. A Edição Especial era: A mulher brasileira hoje. A revista ficou poucos dias nas bancas. O Ministro da Justiça ordenou a apreensão do exemplar em todo o país em nome da “moral e dos bons costumes”. A entrevista de Itala Nandi e o depoimento de uma mulher – Sou mãe solteira e me orgulho disso foi realmente o que mais incomodou a censura e ocasionou uma enxurrada de protestos e telegramas de associações conservadoras femininas  e grupos religiosos.

Todos estes assuntos tratados com seriedade num país onde pouco se lia e muito se escondia colocou a revista na mira da censura. Há, entretanto reportagens e documentos de época que tornaram a revista uma verdadeira escola e um aprendizado.

Quem teve oportunidade de ler como nós e acompanhar a revista através dos anos de 67 e 68 teve a leitura de um completo painel dos acontecimentos que desembocaram no recrudescimento do regime militar em Dezembro de 68 quando a revista passou a Ter a censura permanentemente em sua redação até o seu desaparecimento em 73.

Um rosto suado de mulher simbolizou o Carnaval na capa de Fevereiro de 67 a propósito da reportagem - Carnaval: esta é a festa de todos nós. Mais uma vez Realidade nos surpreendeu.

A trajetória de Luis Travassos em Este moço comanda a agitação-Luis Travassos-preisdente da UNE na capa de Realidade. O perfil de Che Guevara, os depoimentos de Celso Furtado, Ademar de Barros, Jânio Quadros e Plínio Marcos foram fotos e documentos imperdíveis. Guerra no Vietnã. A guerrilha dos Tupamaros estava tudo lá registrado. Como num livro de História as páginas iam registrando os fatos que nos preocupavam e aconteciam.

Acho que era esse o espírito da coisa. Provocar a discussão além de informar. Aguardávamos com impaciência a cada nova edição o que iríamos discutir naquele mês. Mesmo hoje podemos ler suas reportagens, como se fosse um livro de história não ortodoxo e admirar suas fotos e capas que não parecem Ter envelhecido e ainda surpreendem apesar de terem mais de trinta anos. Por isto de vez em quando folheio algum dos quase cinqüenta exemplares que guardei.

 

 

Voltar navback